A análise de M K Bhadrakumar sobre a situação no Irão põe a nu a desinformativa e manipuladora campanha, há anos levada a cabo, pelos media norte-americanos e europeus, com o objectivo de esconder e deturpar a verdadeira luta que se trava há anos no Irão. Na presente fase da campanha, tão habituados a escrever o que eles pensam que os EUA querem, e tomando os desejos pela realidade, nem sequer ligaram ao artigo do Washington Post de 15 de Junho, onde é referida uma sondagem feita por este jornal que previa a vitória de Ahmadinejad, sensivelmente pelos números que se verificaram, mesmo depois do reajustamento feito pela contagem dos votos.
A China quebrou o silêncio sobre a situação do Irão. Esta posição tem como pano de fundo perceptível a mudança da posição de Washington perante os acontecimentos naquele país.
O jornal estatal China Daily, de 5ª feira publicou o seu principal comentário editorial com o título «Pela paz no Irão». Vem no meio de informações dos media ocidentais que o ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani está a mobilizar o clero Qom para pressionar o Conselho de Guardiães – e, também, o Supremo líder Ali Khamenei – para anularem a eleição presidencial que deu a vitória a Mahmud Ahmadinejad para outro mandato de quatro anos.
Pequim teme uma eminente confrontação e aconselha Obama a cumprir a promessa feita no seu discurso do Cairo de não repetir os erros da política dos EUA no Médio Oriente, como o derrube do governo eleito do Irão presidido por Mohamed Mossadeg em 1953. Pequim também adverte para não se deixar que o génio da impaciência popular saia da lamparina, numa região extremamente volátil e a ponto de rebentar. Teerão viveu sexta-feira o seu sexto dia de protestos massivos de partidários de Mir Hossein Mousavi, a quem dizem ter sido arrebatada a vitória.
Paralelo com a Tailândia
Entretanto, um enviado especial da China ao Médio Oriente, Wu Sike, partiu sábado para uma longa viagem de quinze dias pela região (que, significativamente, será completada com consultas com Moscovo), a fim de medir a temperatura política em capitais tão diversas como Cairo e Telavive, Amam e Damasco, e Beirute e Ramalah.
Pequim também fez uma declaração quando se programou para terça-feira uma substantiva reunião bilateral entre o presidente Hu Jintao e Ahmadinejad, à margem da reunião da Cimeira da Organização de Cooperação de Shangai (OCS) em Ykaterimburg, na Rússia.
É presumível que Hu tenha discutido a situação no Irão com o seu homólogo russo Dmitri Medvedev, durante a sua visita oficial a Moscovo depois da Cimeira da OCS. Já antes, Moscovo tinha saudado a reeleição de Ahmadinejad. Tanto a China como a Rússia detestam revoluções «de cor», especialmente quando envolvem coisas tão desconcertantes como o Twitter, que Moscovo presenciou durante alguns meses na Moldávia, o que cai muito mal na estratégia intervencionista global dos EUA.
A China antecipou a reacção contra a vitória de Ahmadinejad. Segunda-feira, o jornal Global Times citou o ex-embaixador chinês no Irão, Hua Liming, dizendo que a situação iraniana só voltará à normalidade se se chegar a um acordo negociado entre «os principais centros do poder político… E, a não ser assim, é possível que se repita a recente agitação da Tailândia.» É muito revelador que o veterano diplomata chinês tenha feito um paralelo com a Tailândia.
No entanto, Hua sublinhou que Ahmadinejad goza de popularidade e que tem «muito apoio nesse país nacionalista porque tem o valor de expressar a sua própria opinião e atreve-se a concretizar as suas políticas». O consenso da comunidade académica chinesa também é o de que a reeleição Ahmadinejad será uma «prova» para Obama.
Por isso, o editorial do China Daily de quinta-feira tem a natureza de um apelo ao governo de Obama para que não arruíne a sua nova política para o Médio Oriente, que se desenvolve bem, através de acções impetuosas. Significativamente, o editorial reafirmou a autenticidade da vitória eleitoral de Ahmadinejad: «Ganhar ou perder são duas caras de uma moeda eleitoral. Alguns candidatos têm pouca inclinação para aceitar a derrota».
O jornal assinalou que uma sondagem à opinião pública anterior à eleição, realizada pelo Washington Post, mostrou que Ahmadinejad tinha uma vantagem de 2 para 1 contra o seu rival mais próximo, e algumas sondagens de opinião feitas no Irão também indicaram mais ou menos o mesmo e, na realidade, este candidato «ganhou a eleição por uma margem inferior. Portanto, as afirmações da oposição contra Ahmadinejad são um pouco surpreendentes».
O editorial adverte: «As tentativas de levar a chamada revolução de cor até ao caos serão muito perigosas. Um Irão desestabilizado não é do interesse de ninguém se queremos manter a paz e a estabilidade no Médio Oriente, e no mundo em geral». Recordou explicitamente que a «intervenção da Guerra-Fria no Irão» pelos EUA levou a que a relação entre os EUA e o Irão sejam difíceis, «devido ao facto de os presidentes dos EUA terem metido o nariz nos assuntos internos do Irão».
Teocracia contra o republicanismo
Pequim compreende muito bem a política revolucionária do Irão. A China foi um dos poucos países que acolheram calorosamente Ruhollah Khomeini como supremo líder (em 1981 e 1989). Ao contrário, a Índia, que professa vínculos «civilizacionais» com o Irão, mostrou-se incapaz de avaliar correctamente as opções políticas da Khamenei pelo republicanismo. A maior parte das elites índianas nem sequer sabe que, em jovem, Khamenei estudou na Universidade Patrice Lumumba em Moscovo.
Seja como for, a reunião de Hu e Ahmadinejad em Ykaterimburg de terça-feira mostrou uma vez mais que Pequim tem uma ideia muito clara sobre o vaivém da política iraniana. Sem dúvida que Hu manifestou a Ahmadinejad a sua grande honra de o ter como interlocutor estimado por Pequim.
Os media chineses seguiram de perto a trajectória da reacção dos EUA à situação do Irão, especialmente a «revolução Twitter», que pôs Pequim em guarda quanto às intenções dos EUA. Existem indicações de que o establisment dos EUA começaram a interferir na política iraniana. A facção de Rafsanjani sempre manteve vias abertas para o Ocidente. Tendo tudo isto em conta, é perceptível um grau de sincronização existente entre a rota da «revolução Twitter» dos EUA, as negociações da Rafsanjani com o clero conservador em Qom e a atitude de desafio, tão pouco característica de Mousavi.
Obama enfrenta desafios múltiplos. Por um lado, como informou quinta-feira Helene Cooper do The New York Times, os contínuos protestos de rua em Teerão estão a fortalecer um grupo de conservadores em Washington (favoráveis a Israel) para exigirem a Obama uma tomada de «posição mais clara de apoio aos manifestantes.» Mas, por outro lado, uma mudança de regime atrasaria, inevitavelmente, a esperada aproximação directa entre os EUA e o Irão, e afectaria o apertado calendário de Obama para assegurar que as negociações se realizem até ao final do ano, pois as centrifugadoras do Irão continuam a funcionar nas suas instalações nucleares.
Uma fragmentação da estrutura do poder em Teerão também seria de pouca utilidade para a ajuda que os EUA fornecem ao Afeganistão. Não obstante, altos funcionários do governo, como o vice-presidente Joseph Biden e a secretária de Estado Hilary Clinton, queriam que os EUA utilizassem um «tom mais forte» na turbulência iraniana. Helene Cooper informou que há pressões sobre Obama no sentido de que este corria o risco de «ficar no lado errado da história num momento potencialmente transformador no Irão».
Uma reacção thermidoriana
Indubitavelmente, a turbulência tem um lado intelectual. Como Obama é um dos poucos políticos dotados de intelectualidade e de um agudo sentido da história sabe que o que está em jogo é uma bem orquestrada tentativa do establisment clerical da linha dura, para meter marcha-atrás aos dolorosos quatro anos do ziguezagueante processo de caminhada para o republicanismo no Irão.
Mousavi é um afável testa-de-ferro dos mullahs, que temem que outros quatro anos de Ahmadinejad afectem os seus interesses estabelecidos. Ahmadinejad já começou a marginalizar o clero das prebendas do poder e dos lugares mais atractivos da economia iraniana, especialmente da indústria petrolífera.
A luta entre os mullahs mundanos (aliados do bazar) e os republicanos é tão antiga como a revolução iraniana de 1979, onde os fedayin do proscrito partido Tudeh (quadros comunistas) foram partidários originais da revolução, a que os clérigos usurparam a liderança. As paixões políticas altamente artificiosas provocadas pela crise dos reféns dos EUA, com 444 dias de duração, ajudaram os astutos clérigos xiitas a executar a reacção thermidoriana e a isolar os dirigentes revolucionários progressistas. Ironicamente, os EUA figuram de novo como protagonistas chave na dialéctica do Irão – ainda que agora não como reféns.
O imam Khomeini tinha muito cuidado com os mullahs iranianos e, por isso, criou o Corpo dos Guardas Revolucionários Iranianos como força independente, para assegurar que os mullahs não sequestravam a revolução. Coerentemente, também a sua preferência era que o governo não fosse dirigido por clérigos. Nos primeiros anos da revolução, as conspirações urdidas pelo triunvirato Behesti-Rafsanjani-Rajai, que organizou a saída do presidente secular e de esquerda, Bani Sadr (protegido de Khomeini), tiveram por objectivo estabelecer um Estado teocrático de um só partido. São especificidades da história revolucionária do Irão que podiam ter escapado à compreensão intelectual de um George W Bush, mas Obama deve estar ao corrente da tortuosidade da política da Rafsanjani.
Se o putsch de Rafsanjani tivesse êxito, na melhor das hipóteses, o Irão parecer-se-ia com um dos decadentes postos avançados do golfo Pérsico pró-ocidental. Seria durável um regime duvidoso? Mais importante, é o que Obama deseja ver como destino para o povo iraniano? O povo árabe também está atento. O Irão é uma excepção onde o povo ficou com mais poder. As multidões de pobres do Irão, que formam a base de apoio de Ahmadinejad, detestam o establisment corrupto e venal dos clérigos. Nem sequer escondem o seu ódio visceral à família Rafsanjani.
Infelizmente, a classe política de Washington não tem a menor ideia do mundo bizantino do clero iraniano. Acicatada pelo lobby israelense, está obcecada pela «mudança de regime». A tentação será organizar uma «revolução de cor». Mas a consequência seria muito pior que o da Ucrânia. O Irão é um poder regional e os escombros cairiam em qualquer parte. Actualmente, os EUA não têm nem influência nem força vital para defender o fluxo de lava de uma erupção vulcânica provocada por uma revolução de cor que poderia ultrapassar as fronteiras do Irão.
* M K Bhadrakumar foi diplomata de carreira da União Indiana, tendo prestado serviço, entre outros países, na ex-URSS, Alemanha e Paquistão e Turquia.
Este texto foi publicado em www.atimes.com/atimes/Middle_East/KF20Ak03.html, a 20 de Junho de 2009.
Tradução de José Paulo Gascão